Doutrinas Básicas
O anglicanismo expressa a sua fé nas palavras de dois grandes credos históricos do cristianismo: o Credo Apostólico e o Credo Niceno, que foram escritos no tempo da igreja indivisa e constituem a confissão normativa da fé ainda hoje.
Para nós, as Sagradas Escrituras contêm toda a doutrina necessária para a salvação e nada que nelas não possa ser lido ou provado pode ser tido como artigo de fé ou necessário para a salvação.
Entretanto, a tradição cristã abrange muito mais do que a Bíblia. Nela, se inclui a valiosa contribuição de pessoas consideradas santas e pensadoras do Povo de Deus, a liturgia, o tesouro devocional acumulado durante séculos e as implicações morais da fé cristã na vida diária.
Além disso, reconhecendo que as afirmações humanas sobre a natureza de Deus são insuficientes para expressar toda a verdade, a IEAB estimula o estudo e a pesquisa sobre a verdade em todos os campos do conhecimento humano. Não antepõe limites à investigação honesta e moderna exegese bíblica e favorece o uso da razão como faculdade dada por Deus para enriquecer e ampliar a verdade revelada.
Acreditamos que o Espírito Santo guia homens e mulheres na busca da verdade, capacitando a Igreja a relacionar a verdade humana à verdade de Deus revelada em Jesus Cristo.
Nossa fé é centrada no testemunho das Escrituras Sagradas, nos credos históricos e Tradição da Igreja Cristã, e no uso da razão – dom de Deus – para entender Sua mensagem em um mundo de cada vez mais rápidas mudanças.
O jeito anglicano de fazer teologia
Existe uma teologia caracteristicamente anglicana?
A resposta dos anglicanos, em geral, é negativa. Então, não há produção teológica no anglicanismo?
Carecem aqui alguns comentários. Quando os teólogos anglicanos afirmam que não há uma teologia anglicana, eles querem dizer com isso que não há um sistema de teologia especificamente anglicano. Em outras palavras, não existe um conteúdo sistematizado de teologia especificamente anglicano.
O quadrilátero de Chicago-Lambeth, de 1888, define quatro princípios básicos que permeiam as igrejas da Comunhão Anglicana:
1) As Escrituras Sagradas do Velho e Novo Testamentos, "contendo tudo o que é necessário para a salvação", e regra e padrão de fé.
2) O Credo dos Apóstolos, como símbolo batismal; e o Credo Niceno, como a declaração suficiente da fé cristã.
3) Os dois Sacramentos ordenados por Cristo: Batismo e Ceia do Senhor – ministrados com o uso infalível das palavras de Cristo, e dos elementos ordenados por Ele. Obs.: Há outros Sacramentos, não ordenados diretamente por Jesus, mas reconhecidos pela Igreja como tendo caráter sacramental. São eles: a Confirmação, a Penitência, as Ordens Ministeriais, o Matrimônio e a Unção dos Enfermos.
4) O Episcopado Histórico, adaptado localmente nos métodos de administração às necessidades variadas das nações e povos chamados por Deus para unidade de Sua Igreja.
Assim, as Igrejas da Comunhão Anglicana têm em comum com outras Igrejas históricas as Escrituras, os Credos e os sacramentos. É quase habitual, também, dizermos que, na Comunhão Anglicana, não existe uma Confissão como a de Augsburgo ou outras similares. De fato, não existe. E o que existe é o Livro de Oração Comum, que empregamos nas nossas diversas celebrações. Aí estão os fundamentais.
A qualificação “anglicana” da teologia não está em seu conteúdo, mas em seu método. O que se pretende ser anglicano está no modo como as Igrejas da Comunhão Anglicana entendem por Evangelho e seu ensino apostólico, como elas adoram o Deus manifesto e conhecido em Jesus Cristo pelo poder do Espírito Santo no Evangelho e nas Escrituras, como elas organizam a vida da Igreja como a Igreja apostólica e como elas entendem a relação entre a Igreja com o passado e entre a Igreja e a sociedade no dado momento. Em tudo isso estão envolvidos as Escrituras, Credos, doutrinas, tradição (memória, experiência da vivência da Igreja pelos séculos) liturgia, sacramentos, pastoral, política.
O método anglicano
O método anglicano, por assim dizer, desenvolveu-se no século XVI e XVII, pelo desejo da Igreja da Inglaterra de levar em consideração a continuidade com o seu passado, principalmente com a Igreja Primitiva, e da inclusão das percepções e experiências da Reforma em meio às pressões políticas, religiosas e culturais que a nação e a Igreja sofriam. Em poucas palavras, era uma forma de teologia contextual, “via média”, com apelo relativo à antiguidade, isto é, à Igreja Primitiva.
Nos séculos XVI e XVII a via media significou o caminho entre Roma e Genebra. Porém, essa via média como método não se limitou apenas às duas posições eclesiais, e implicou mais na inclusividade, distinguindo o essencial e o secundário. E isso ajudou os teólogos anglicanos a enfrentar e aceitar os desafios da crítica bíblica posteriormente, por exemplo.
Cenário histórico
No fim da Idade Média, havia deficiências na Igreja inglesa e europeia em geral: nível inadequado de educação cristã do laicato, e nível baixo do conhecimento do clero e satisfação geral com o mínimo de conformidade, de participação mecânica na liturgia e na vida sacramental e ausência de ênfase em temas centrais.
Missal de Sarum
O movimento dos lolardos era forte entre pessoas humildes, baseado em Wycliff. Já Tomas More, John Colet (Deão da Catedral de São Paulo) e Erasmo tiveram influência na esfera universitária. Erasmo, a convite de Henrique VIII, veio preparar o texto grego do Novo Testamento.
Na Inglaterra, o Parlamento patrocinava a causa da monarquia contra a elite eclesiástica atrelada ao domínio papal. Isto distinguia a Inglaterra de outros países europeus.
A imprensa facilitou a divulgação das obras de Lutero e elas vieram à Inglaterra. Também vieram obras de outros centros como Zurique e Basileia. Com certa perplexidade, foram lidas, nas universidades, pelo clérigos e intelectuais, as obras que atacavam a autoridade eclesiástica vigente.
As reações iniciais das autoridades eram negativas. A obra anti-Lutero, Assertio Septum Sacramentorum (1525), que portava o nome de Henrique VIII, granjeou o título de Defensor da Fé conferido por Leão X. A questão do divórcio de Henrique com a Catarina de Aragão, contudo, era um problema político para o rei, porque não tinham um herdeiro e ela já estava com seus 40 anos de idade. Para o Papa Clemente VII a anulação do casamento era, também, um problema político. Pois Catarina de Aragão era a tia do Carlos V, em cujas mãos estava o papado.
Henrique VIII
Para desatrelar-se do Papa, o rei recorreu de um ato instaurado no século XIV. Esse ato se denominava de Praemunire e proibia ou restringia o apelo ao tribunal papal e o envio das ofertas ao papado. Consta que um monge expressou o sentimento do povo desta maneira: “Senhor Jesus, retire de nosso meio o poder papal ou diminua o poder que ele acredita ter sobre o nosso povo!”
Oficialmente, a Igreja permaneceu católica medieval. O rei era contrário à Reforma. Por outro lado, havia estudos da Reforma luterana e calvinista. As universidades eram centros de estudos da Reforma e do novo conhecimento introduzido pelos renascentistas. Durante esse século e o século seguinte, a Igreja Anglicana pendeu entre esses dois polos
Os artigos e livros
Durante o governo de Henrique VIII, a Igreja pendeu mais para o lado católico. Os Dez Artigos, por exemplo, versavam sobre os Credos, os Sacramentos, a Presença Real na Eucaristia, a invocação dos santos e o uso de imagens (ambos com uma aprovação comedida). O “Livro dos Bispos” foi elaborado tendo como objetivo ajudar os clérigos a pregar de acordo com a nova situação eclesial, isto é, com o princípio da Reforma. Baseado nos Dez Artigos, o Livro procurava expor a doutrina e a moral. Por isso, havia explicações sobre os Credos, os Sete Sacramentos, o Pai Nosso, a Ave Maria, a Justificação e o Purgatório.
Após a ascensão do Rei Eduardo VI ao trono (1547), houve rápidas reformas, porém não houve nenhuma declaração sobre a posição doutrinária da Igreja. Dá-se o retorno do uso da Bíblia no vernáculo e na maioria dos ofícios religiosos. Dois Livros de Oração Comum são publicados: um em 1549 e outro em 1552.
Thomas Cranmer
Em 1553 houve a publicação de Quarenta e Dois Artigos. Estes tiveram pouca duração, porque, no mesmo ano, a rainha Maria os revogou. Porém, os 42 Artigos representaram uma nova linha de pensamento teológico, retomando, em parte, os treze artigos sobre os quais havia concordância entre anglicanos e luteranos. Sua publicação visava criticar duas posições adversárias: o catolicismo medieval e os anabatistas.
Com a ascensão ao trono de Isabel (em inglês, Elizabeth) I, após o conturbado reinado de Maria, a católica, houve o objetivo principal assegurar a unidade da nação diante das adversidades externas. Ela concentrou-se não na doutrina, mas na disciplina da adoração. Por isso, a posição do Livro de Oração Comum na Inglaterra foi reforçada.
Os 42 Artigos foram retomados e revisados, levando a 39 Artigos de influência mais luterana do que calvinista no que se refere à Reforma. Os extremados calvinistas formaram o que veio chamar de “puritanos”. Opuseram-se ao Livro de Oração Comum. Em poucas palavras, eles desejavam destruir tudo que se desenvolveu na Igreja Ocidental e Oriental e retornar às Escrituras e construir uma nova Igreja. A continuidade foi questionada. Eles se opuseram à Liturgia da Eucaristia (considerada mais um formalismo e uma Missa romana), às expressões externas (por exemplo: sinal da cruz no Batismo, a imposição das mãos na Confirmação, o uso de alianças no casamento, a celebração dos santos no calendário cristão e a vênia quando se pronuncia o nome de Jesus), às antífonas na leitura dos Salmos, às vestes, às cores, aos ornamentos, ao ministério sacramental e, principalmente, ao episcopado.
De início, a Igreja da Inglaterra incluía os puritanos. Entretanto, suas divergências foram crescendo cada vez mais até o momento em que a Inglaterra cai em guerra civil. O arcebispo da Cantuária, William Laud, tido por seus opositores como romanista e arminiano, foi executado. O Rei Carlos I é executado e uma república influenciada pelos puritanos toma o poder. O episcopado é oficialmente abolido.
É somente em 1660 que se dá a restauração da monarquia – e com ela, da Igreja da Inglaterra. Um novo Livro de Oração Comum (1662) é estabelecido e a Igreja da Inglaterra retoma à calmaria.
É interessante ressaltar que no século XIX, com a controvérsia gerada pelo movimento anglo-católico, o anglicanismo toma as feições amplas que goza atualmente. O sucesso em permitir a co-existência de indivíduos com opiniões tão diferenciadas em áreas como liturgia, sacramentos e no papel da Comunhão dos Santos (entre muitas outras coisas) tornou o anglicanismo, de certa forma, num mini-ambiente ecumênico. Nesse mesmo século, a formação da Comunhão Anglicana levou a uma multiplicidade de Livros de Oração Comum em diferentes línguas, províncias e dioceses; adaptados às realidades específicas. E, embora os 39 Artigos ainda sejam normativos em algumas províncias, em muitas, passaram a ter caráter histórico apenas, dando lugar ao Quadrilátero de Chicago-Lambeth como real pacto entre os anglicanos ao redor do mundo.
O Livro de Oração Comum não é um missal. É claro que ele herda muito do Missal (e do Rito) de Sarum, praticado na Inglaterra medieval. Entretanto, ele é suficientemente amplo a ponto de não amarrar uma maneira “melhor” de se fazer uma celebração. Há anglicanos que celebram uma missa solene com toda a pompa do catolicismo medieval inglês. Há anglicanos que celebram a Santa Eucaristia de maneira discreta e intimista. Há outros que batem palmas e cantam canções festivas. Mas todos ecoam as mesmas orações e dizeres do Livro de Oração Comum. Rezando em conjunto, os anglicanos aprendem que o que nos une é muito maior que o que nos separa.
Escritura-tradição-razão: o tripé de hooker
O Rev. Richard Hooker, sacerdote inglês do século XVII, tem muito a contribuir ao modo de se fazer teologia anglicano. Na sua época, havia várias controvérsias de ordem teológica, as quais ele abordou de forma criativa e conclusiva.
Richard Hooker
Quanto ao papel das Escrituras Sagradas, Hooker evitou os dois extremos: a posição romana de que as Escrituras são insuficientes e que a Tradição deve suprir a insuficiência, e a posição puritana de que é pecaminosa e ilegítima a liberdade da Igreja tomar decisões sobre o que as Escrituras silenciam.
Hooker refletiu sobre essa e outras matérias como fizeram seus contemporâneos levando em consideração a Bíblia, a Tradição, (a interpretação contínua das Escrituras, sua aplicação), e a Razão (o bom senso, o senso comum de um povo em determinado tempo e lugar, a capacidade humana de simbolizar, ordenar, compartilhar e comunicar a experiência).
Com Hooker e outros, e com os Artigos, houve a possibilidade de desenvolver a leitura crítica, histórica, contextual, e teologicamente trinitária e pastoral. Essa é a fé da Igreja Anglicana mundo afora. E essa é a fé da nossa IEAB
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Adaptado do artigo “Existe uma Teologia Caracteristicamente Anglicana?” de Sumio Takatsu e do livro “A Igreja Militante”, de N. Duval da Silva