“As igrejas têm jogado as violências contra mulheres para debaixo do tapete”

 

A reverenda Elineide Ferreira Oliveira, coordenadora e assistente social da Casa Noeli dos Santos, e presidente do Conselho da Mulher de Ariquemes, em Rondônia, concedeu uma entrevista à doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, Tatiane Duarte. 

O conteúdo foi originalmente publicado pelo portal ALC Notícias e, depois, replicado pelo CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil. Confira a íntegra a seguir:
Tatiane – Na entrevista que fizemos em novembro de 2015, você colocou que o enfrentamento das violências domésticas era não apenas responsabilidade da sociedade, mas também “um trabalho da igreja”, por isso, “a igreja não poderia tapar os olhos e nem cruzar os braços”. Você poderia falar mais sobre a importância das igrejas, especialmente através de ações concretas de enfrentamento das violências contra as mulheres?
Elineide Ferreira – A cada caso de mulheres que acolhemos [na Casa Noeli], vemos a interferência negativa que muitos líderes religiosos fazem, sem refletir o quão tóxica é a violência de gênero. Muitos desses líderes, com pensamento machista, pedem para a mulher orar mais, esperar que é apenas mais uma provação, que ela deve relevar mais uma vez, pois “homem é assim mesmo”, que quem edifica o lar é a mulher…
Essas orientações […] alimentam uma ideia do casamento longo e duradouro, porém totalmente tóxico e adoecido, sem companheirismo, parceria, amor, afeto e respeito. O que afeta não apenas a mulher, mas toda família e quem por perto estiver. Aí que entra o “x” da questão: as lideranças religiosas representantes da Igreja de Deus ainda não perceberam que estarão cumprindo seu papel quando começarem a capacitar seus líderes [para construir] uma Igreja que não encobre violência vestida de machismo, que sabe que as crenças religiosas não podem justificar casos de violências contra as mulheres e meninas, […] e que o Deus de Amor quer que o casal viva em nível igual, ombro a ombro, e que em lares onde é identificada a violência, que seja orientadas ambas as partes sobre seus direitos e quais punições devem arcar, seja a nível eclesial ou judicial.
E, por fim, as Igrejas precisam se capacitar e trabalhar o tema, pois a demanda bate à porta sempre, para não dizer todos os dias, e o que tem sido feito até agora? Tem se jogado as violências contra as mulheres, inclusive as cristãs, para debaixo do tapete, e as igrejas continuam a fingir que naquela comunidade esse tipo de coisa não acontece!
Tatiane – Agora, gostaria que você falasse sobre o surgimento da Casa Noeli, como ela se organiza, inclusive financeiramente, e se há algum convênio com o governo local.
 Elineide Ferreira – A Casa Noeli surgiu de uma demanda do município de se ter um local seguro e acolhedor para as mulheres e seus filhos após denunciarem a violência sofrida em suas casas, por seus companheiros. Assim, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil assumiu esse desafio e, há 10 anos, fundou esta casa de acolhimento a mulheres em situação de violência, que é uma instituição filantrópica que se mantém com recurso próprio, doações, parcerias nacionais e internacionais, e através de convênio com a Prefeitura. 
[Este ano] completamos 10 anos de existência, e comemoramos nossa credibilidade como um serviço sério, relevante, necessário e referência para a cidade. Mas um longo caminho precisa ser trilhado, e muitos direitos das mulheres precisam, ainda, ser garantidos. Mas seguimos com nossa luta diária pela equidade de gênero e pelo fim da violência contra as mulheres.
Tatiane – E agora durante a pandemia do novo Coronavírus, como a casa funcionou? Acolheu muitas mulheres? Parou seu atendimento?
Elineide Ferreira – O número de mulheres acolhidas aumentou. Tivemos que adotar, de forma emergencial, procedimentos fora da nossa rotina: usar máscara todo o tempo, álcool em gel por todos os lugares, limpeza do ambiente com maior frequência e com produtos de higiene devido à rotatividade de mulheres e crianças. Todo esse novo protocolo fez aumentar as nossas despesas. Além disso, a tramitação dos casos tem levado mais tempo para resolver e encaminhar [junto] aos órgãos da rede de atendimento e enfrentamento. Tivemos muita procura de mulheres por cestas básicas, orientação ao auxílio emergencial e demais dúvidas em relação à pandemia. Apesar da situação financeira da Casa e do gerenciamento caótico da pandemia no Brasil, mantivemos o serviço em pleno funcionamento, ininterruptamente.
Tatiane – No Encontro Ecumênico de Mulheres, organizado pelo CONIC em novembro de 2016, Glória Ulloa, presidente do Conselho para a América Latina e o Caribe do Conselho Mundial de Igrejas/CMI foi categórica: “Toda violência contra a mulher é pecado”. Diante de números alarmantes de violências e de feminicídios, qual a importância de um lugar seguro como a Casa Noeli para as mulheres? E quais os desafios às igrejas e à sociedade, visto que nossas irmãs ainda não têm vida em abundância?
Elineide Ferreira – Se antes era necessário e imprescindível um serviço como o que fazemos, a pandemia tem demonstrado um aumento alarmante do número de feminicídios e das violências domésticas no Brasil. Temos visto a dificuldade de as mulheres buscarem e ter ajuda do Estado; elas ficam refém do seu agressor em sua própria casa. E quando essa mulher consegue pedir ajuda, ela não tem para onde ir. Ou se tem, não é um lugar seguro. Devemos abrir os olhos enquanto Igrejas e fazer nossa parte como cidadãos responsáveis e cristãos que se importam com a vida de todas as pessoas!
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Tatiane Duarte é doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, Brasil, feminista, militante, cientista e mãe do Dante. Pesquisadora das relações entre grupos religiosos cristãos, espaço público, política e Estado no Brasil com foco nos direitos das mulheres, fundamentalismos teológicos e religiosos e avanço conservador no Brasil.
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