Barbáries recentes aqui no Brasil, como os assassinatos do repositor Durval Teófilo Filho e do congolês Moïse Kabagambe, levantaram questionamentos a respeito do racismo estrutural brasileiro. Mas apesar de ser um termo bastante conhecido do público acadêmico, e cada vez mais utilizado em nossas rodas de conversa, muitas pessoas não sabem o que significa o tal “racismo estrutural” e suas implicações na sociedade.
Para esclarecer um pouco o assunto, e toda a contextualização que há por trás do tema, conversamos com o reverendo Adriano Portela, pesquisador e especialista na área.
Adriano é natural do Recôncavo baiano, mais precisamente da cidade de Santo Amaro da Purificação, uma região marcadamente influenciada pela cultura de matriz africana, dada a pujança do ciclo econômico da cana-de-açúcar, em cujos engenhos trabalharam homens e mulheres africanos escravizados e seus descendentes, até o final do século XIX.
“Sou um homem negro e fui o primeiro de minha família a cursar o Ensino Superior. Obtive o grau de doutor em Letras no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquiso temas que inter-relacionam Literatura e Teologia”, explica Portela. “Na IEAB, sou presbítero da Diocese Anglicana do Recife, atuando como ministro encarregado da Missão Anglicana Ressurreição do Senhor, em Feira de Santana, que é a segunda maior cidade da Bahia”, completa.
A seguir, confira a entrevista que fizemos com ele. E aproveite para ampliar seus horizontes educacionais a respeito de um assunto tão vital para compreender nossa sociedade atual.
Boa leitura.
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Adriano, apesar de cada vez mais popular, muitas pessoas não sabem o que é racismo estrutural. Poderia nos explicar um pouco melhor o que significa isso?
Primeiramente, temos que ter noção que temos nessa expressão “racismo estrutural” um substantivo (racismo) e um adjetivo (estrutural) e que, portanto, estamos falando de um tipo específico de racismo.
Os tempos atuais têm nos ensinado que não podemos prescindir do óbvio, abrir mão de falar o óbvio, por isso, permita-me dar um passo atrás para tratar sobre o que é racismo, antes de tentar explicar o que é racismo estrutural. Num país em que, vira e mexe, ouvimos falar em “racismo reverso” não me parece que esta seja uma tarefa dispensável.
Recorrerei à conceituação dada por dois renomados intelectuais negros, a saber, Sílvio Almeida e Kabengele Munanga. Segundo o primeiro, “o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”. (ALMEIDA, 2019, p. 21) Prestemos inicialmente atenção ao fato de que o racismo está fundamentado na noção de raça, noção esta que historicamente se constituiu num duplo movimento racional de classificação/hierarquização, segundo Kabengele Munanga (2004). Isso quer dizer que se considera que há grupos distintos biologicamente de seres humanos e que uns são superiores a outros porque haveria uma relação direta de consequência entre o dado biológico de um determinado grupo e suas características moral, intelectual e cultural (MUNANGA, 2004, p. 23).
Prestemos atenção ainda que, segundo Sílvio Almeida, o racismo é uma forma sistemática de discriminação. Quer dizer, não se trata de algo pontual, nem circunstancial, mas algo que acontece de maneira reiterada e organizada nos diversos campos que constituem a vida social. Razão pela qual não se pode falar no esdrúxulo “racismo reverso”. A discriminação que uma pessoa branca possa, de fato, sofrer de uma pessoa negra ou indígena, nunca chegará a ser algo sistemático: isto é, pessoas brancas não perderão empregos pelo fato de serem brancas, não deixarão de ser promovidas por serem brancas, não serão privadas de educação de qualidade por serem brancas e tampouco estarão estatisticamente mais sujeitas ao assassinato por serem brancas.
E aqui quero salientar a última coisa no conceito apresentado por Sílvio Almeida: que a discriminação se materializa em vantagens ou desvantagens, a depender do grupo ao qual pertençamos. Quer dizer, o racismo não se trata apenas de um preconceito, mas de práticas que ocasionam desigualdades sociais gritantes (discriminação).
Dito isto, como entendermos o adjetivo “estrutural” do conceito de racismo estrutural sobre o qual vocês me perguntam? Sílvio Almeida detalha que há, ao menos, três compreensões sobre a natureza do racismo: individualista, institucional e estrutural. Há uma tendência a reduzir o racismo a uma atitude individual e, como tal, se tratar de uma questão ética, racional ou psicológica do indivíduo que pratica o racismo. Mas isso não explica tudo. Por essa razão, autores como Charles V. Hamilton e Kwame Ture, em Black Power: Politics of Liberation in America, buscaram falar sobre o racismo institucional, entendendo que “as instituições atuam na formulação de regras e imposição de padrões sociais que atribuem privilégios a um determinado grupo racial, no caso, os brancos”. (ALMEIDA, 2019, p. 29-30). Isso tem a ver, por exemplo, com a aparência, a linguagem, a performance corporal esperada pelas instituições como paradigma de qualidade. Isso tem a ver também com o atendimento dispensado por determinada instituição às pessoas “X” e “Y”, só para citar um caso, a abordagem policial aos jovens negros e brancos.
Mas isso ainda não explica tudo. A atitude de alguns policiais em abordagens é a superfície do problema; é um sintoma e não a doença, permitam-me a metáfora. Sílvio Almeida (2019, p. 30) nos explica que “se há instituições cujos padrões de funcionamento redundam em regras que privilegiem determinados grupos raciais, é porque o racismo é parte da ordem social. Não é algo criado pela instituição, mas é por ela reproduzido”. Daí que devamos falar em racismo estrutural. O racismo é um dos pilares estruturantes da nossa sociedade, de modo que determina tanto comportamentos individuais, quanto práticas institucionais. Estamos falando de uma lógica de existência, de relacionamento e de funcionamento que atravessa a Política, o Direito, a Educação, a Economia, a Afetividade, etc. Perceber isso é importante, não para desresponsabilizar pessoas racistas, mas sim para entendermos que não são atitudes isoladas, nem um problema de determinadas instâncias, mas sim algo complexo e orgânico na sociedade. Desse modo, tomamos consciência de que “a mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas”. (ALMEIDA, 2019, p. 33)
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Como combater o racismo estrutural no Brasil? Claro que essa é uma pergunta ampla demais, mas poderia apontar alguns caminhos?
Sim, a pergunta é ampla, mas ao mesmo tempo a resposta para ela é tão específica. Precisamos darmos conta de que o tema do racismo estrutural, para ser bem específico, deve ser posto em pauta, isto é, debatido nas diversas instituições. Como diz o próprio Sílvio Almeida (2019, p. 31), “sem nada fazer, toda instituição irá se tornar uma correia de transmissão de privilégios e violências racistas”.
Debater o racismo é, em suma, falarmos em formação de consciências. Alguém pode perguntar: “Mas não temos feito tanto isso?” Sim, temos feito tanto, todavia, ainda não foi o suficiente. Falarmos em pôr o racismo em pauta significa não aceitarmos a afirmação da inexistência do racismo no Brasil e tampouco o mito da democracia racial. Temos falado tanto de negacionismo científico ultimamente, por conta da postura adotada por alguns em face da pandemia da COVID-19, mas enfrentamos de longas datas uma onda de negacionismo desde a perspectiva sociológica, no que se trata do racismo.
Sílvio Almeida (2019, p. 31), mais uma vez, nos ajuda na pergunta posta aqui, sistematizando a tarefa das instituições no combate ao racismo estrutural. Segundo o autor:
“É dever de uma instituição que realmente se preocupe com a questão racial investir na adoção de políticas internas que visem: a) promover a igualdade e a diversidade em suas relações internas e com o público externo – por exemplo, na publicidade; b) remover obstáculos para a ascensão de minorias em posições de direção e de prestígio na instituição; c) manter espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais; d) promover o acolhimento e possível composição de conflitos raciais e de gênero.”
É preciso trazer respostas a partir das instituições, porque são elas que retroalimentam o racismo estrutural que as tornam instituições racistas. Não teria sentido dar respostas individualistas a problemas orgânicos, embora as respostas individualistas sejam extremamente necessárias no enfrentamento ao racismo que se manifesta cotidianamente.
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Enquanto anglicano, você acha que a Igreja tem um papel importante na conscientização das pessoas sobre o assunto?
Sim, por óbvio. A primeira tarefa na conscientização das pessoas sobre o assunto é a própria confissão de culpa, pois o racismo é um pecado social que foi sustentado pelo discurso cristão e pelas práticas de cada instituição religiosa específica, inclusive a Comunhão Anglicana. Não podemos nos esquecer, por exemplo, do imperialismo Britânico.
Esta confissão de culpa ou o reconhecimento de que a Igreja, enquanto instituição, está atravessada pelo racismo estrutural, é emblemático e tem um impacto pedagógico muito grande, porque força as pessoas a pensarem em suas próprias práticas.
Mas não é só aí que a Igreja pode cooperar na conscientização das pessoas. Ela tem um papel importante também na denúncia do racismo que atravessa a nossa sociedade, porque toda denúncia traz em si um aspecto pedagógico na medida em que ensina sobre direitos e deveres. Não pode haver crimes raciais existentes na sociedade e a Igreja permanecer inerte, indiferente, como se nada estivesse acontecendo. Cabe à Igreja se posicionar, colocando sua voz em favor da justiça social.
Compreendo que a Igreja tem capacidade de conscientizar as pessoas através de seu engajamento nas iniciativas antirracistas. Nem sempre temos condições de sermos nós mesmos, enquanto Igreja, a promover iniciativas, mas temos condições de nos tornamos parceiros e parceiras de tais iniciativas; temos condições de sermos agentes multiplicadores através do alcance que temos nas famílias e sociedade.
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Você há de convir que a Igreja também pode, muitas vezes, reforçar o racismo. Por exemplo, já tivemos pregadores bem conhecidos dizendo que a “cor da pele escura” (sic) era uma “marca de Cam”. Com isso, queriam justificar as mazelas provocadas pelos colonizadores na África. Esse tipo de discurso, ainda hoje, segue forte dentro de muitas correntes cristãs. Como combater isso com o Evangelho?
Sim, a Igreja durante muito tempo reforçou o racismo e ainda hoje o reforça em algumas situações. É sabido de todos que o escravagismo recebeu uma justificativa teológica a partir de uma hermenêutica de Gênesis 9 fortemente conveniente com o colonialismo. Neste livro, lemos a maldição de Noé à descendência de seu filho Cam, em razão deste haver descoberto a nudez do pai e haver contado aos irmãos: “Maldito seja Canaã [filho de Cam]! Que se torne o último dos escravos de seus irmãos” (Gn 9:25). Cam, cuja etimologia do nome é “queimado”, teve associadas a si e a sua descendência a região norte da África e da Arábia (terras de povos negros). De acordo com a Lista dos Povos (Gn 10), são “filhos de Cam: Cuch [= Etiópia], Mesraim [= Egito], Fut [= Líbia] e Canaã” (Gn 10: 6). Este argumento repetido à exaustão favoreceu uma capa de moralidade ao escândalo do escravagismo. E continua, até os dias atuais, sendo utilizado como justificativa, ainda que quem o utilize nem sempre aprove a escravidão.
Entendo que a melhor forma de combatermos coisas como essa é fazendo aquilo que é próprio da comunidade de fé: aprimorando os instrumentos de interpretação bíblica. Sofremos ora do mal do fundamentalismo, que lida com a Escritura como algo engessado e literal; ora do mal da superstição, que lida com o texto sagrado como algo mágico… essa baixa cultura bíblica favorece o prolongamento de interpretações ingênuas (na melhor das hipóteses) como a operada em Gênesis 9 em relação à escravidão.
Enquanto respondo a esta questão, paro aqui para explicar ao meu filho à pergunta sobre “o que é a maldição de Cam e porque foi associada à escravidão”. Faço um breve relato para ele, que de imediato retruca: “E o que tem ele ter visto o pai nu e ter contado aos irmãos? Não eram todos da mesma família?” Essa é a postura a ser fomentada em nossas comunidades: a postura da indagação ao texto bíblico. Pelo contrário, toma-se de imediato a visão da nudez de Noé como um problema real; toma-se de imediato a maldição lançada contra Cam como algo adequado e “da vontade de Deus”. Não há quem se pergunte: “Por que Noé se embriagou?”; “Deus se agradou dessa maldição?” Perguntas simples como essas livrariam o Ocidente da contraditória aceitação da escravidão, que fraturava profundamente a compreensão cristã de coisas como a filiação divina de todas as pessoas e o valor universal do sacrifício de Cristo.
Eu sei que investir na formação bíblica é ir na contramão do fenômeno religioso que nos circunda, o qual tende mais para o sentimentalismo que para a reflexão; mais para a prosperidade que para o Evangelho. É uma tarefa árdua, mas não vejo outro caminho próprio daquilo que é nosso, se não a formação bíblica.
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Para fazer parte da Ku Klux Klan, era preciso ser branco, americano e cristão protestante. O detalhe é que se tratava de uma organização terrorista que perseguia e matava negros e imigrantes. Você acha que a Igreja, de algum modo, aprendeu a repelir esse tipo de movimento em seu seio, ou, ainda agora, ela segue sendo permissiva a discursos que levam à segregação e perseguição?
Certamente, a Igreja aprendeu muito a inibir essas tendências corrosivas de prática da fé, de modo que dificilmente encontraremos agrupamentos dentro das igrejas organizados em torno de propostas de um combate ativo às identidades. Embora nem todas as comunidades de fé acolham integralmente aquilo que se chama de Direitos Humanos, elas sabem que não podem ser indiferentes a eles, se quiserem ser consideradas razoáveis. Então, há certa vigilância a excessos que possam provocar conflitos abertos.
Mas é preciso dizer também que as Igrejas ainda continuam sendo um lugar propício para discursos segregacionistas e persecutórios, consequentes do fundamentalismo, bem como de vaidades moral e espiritual. Do mesmo modo, é preciso dizer que uma atitude permissiva frente à dissonância de valores esperados da fé não é rara de se encontrar. Em muitos casos, não se trata de uma permissividade por compactuação ideológica, mas sim pelo medo de perdas materiais que o enfrentamento acarretaria. Trata-se de uma permissividade estratégica, calculada. Eu diria, portanto, que a Igreja Cristã encontra-se num entre-lugar, entre a consciência e a ação.
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Por qual razão, na sua opinião, as igrejas, que em tese deveriam ter um ambiente encorajador, libertário e acolhedor, muitas vezes servem como adubo para movimentos fundamentalistas que reforçam o racismo estrutural?
A noção de eleição divina, presente na tradição judaica e registrada nos textos bíblicos, funda a identidade crente. Tal noção pode facilmente se corromper numa ideologia de superioridade moral que constitui em um “nós contra eles”. Um nós idealizado, que disputa o mundo, com um eles desvirtuado. Lembremo-nos de que esse nós idealizado está intimamente colado a um conceito de homem (destaque para o gênero) que nos veio como herança do colonialismo europeu. O multiculturalismo contemporâneo é uma ameaça a esse eu idealizado, único, centrado. Como a comunidade dos eleitos e das eleitas, com estéticas e performances pré-definidas, vai conceber em seu meio um corpo preto em busca de ancestralidade? Percebe? É um eles desvirtuado que foge ao nós idealizado.
A comunidade tem que se colocar a questão: Eleitos para quê? A resposta a essa pergunta será determinante para a reação que a comunidade esboçará frente ao multiculturalismo que escapa à idealização fundamentalista. Pode-se endossar o acolhimento, a libertação e o empoderamento; ou, do contrário, pode-se reforçar as barreiras de vigilância do ideal, recrudescendo o racismo, a xenofobia, o machismo, o sexismo e todas as mazelas ideológicas que destoam gravemente do que é o Evangelho.
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Há luz no fim do túnel? Qual?