Foi realizado, entre os dias 26 e 28 de maio, na Guatemala, uma Consulta sobre Educação Teológica na Comunhão Anglicana. O Webinário: Migração, Missão e o papel da Educação Teológica a partir de nossos contextos abriu essa consulta. A ação é parte da Consulta Global, neste caso, latino-americana, sobre a Educação Teológica na Comunhão Anglicana (sua missão, papel, impacto e compromisso). A consulta faz parte do processo de preparação para a Conferência de Lambeth.
Entre as finalidades da atividade, que foi organizada pelo Departamento que trabalha com a Educação Teológica na Comunhão Anglicana (Theological Education in the Anglican Communion – TEAC), estavam: elaborar artigos coletivos para publicar; coletar sugestões para o desenvolvimento da educação teológica; compartilhar experiências; olhar para a realidade da migração no corredor migratório; indicar recursos e necessidades para o fortalecimento da Educação Teológica.
O Brasil esteve representado pelo reverendo Victor Hugo, do Distrito Missionário da nossa IEAB, e pelo teólogo leigo anglicano Wallace de Góis Silva, da Catedral da Santíssima Trindade, São Paulo. Também contou com teólogas e teólogos da Argentina (Província América do Sul), Colômbia (IX Província da TEC), Costa Rica, Guatemala (IARCA), México (Provincia de México), Ministério Latino da TEC e Escritório de Relações Globais da TEC.
A seguir, compartilhamos os relatos de ambos.
Victor: “Será que os migrantes são para nós o rosto de Jesus Cristo?”
O Encontro que participei na Guatemala foi uma oportunidade muito importante, primeiro, para a Igreja, depois, para mim. […] Em linhas gerais, digo que volto do encontro com a sensação de “missão cumprida”, isto é, fui para aprender, fazer contatos, socializar, contribuir e assim ocorreu. A começar pela escolha do lugar, ou seja, a Cidade de Guatemala. Desde essa, reencontrei-me com as raízes das teologias provindas das profundezas do clamor do Povo. Fui muito bem acolhido pela Igreja Episcopal de Guatemala, A reverenda Neli (e sua comunidade) e o bispo Silvestre nos deixaram muito à vontade e nos proporcionaram uma hospitalidade muito humana e fraterna. Pudemos, nesses poucos dias, nos sentir como irmãs e irmãos, parecia que já nos conhecíamos há muito tempo. O calor do povo latino é algo muito contagiante.
Tive a grata satisfação e a oportunidade de conhecer o reverendo Stephen, da TEAC, muito simpático e simples. Também tive o prazer de conhecer a reverenda Glenda, que me encantou pelo seu vigor, cuidado e atenção. Sem falar dos demais que foram muito fraternos. Posso dizer que esse encontro foi uma oportunidade de imergir na comunhão.
Com respeito ao tema, a proposta era escutar as experiências que as Igrejas da América Latina têm vivenciado. Percebi, a partir dos relatos das pessoas, o sofrimento das pessoas guatemaltecas, panamenhas e mexicanas. Confesso que não tinha consciência de como esse tema é doloroso, pois meus contatos com migrantes não foram tão intensos quantos das pessoas que lá estavam. Fiquei chocado ao saber que Guatemala, Panamá, Honduras formam corredores migratórios (o maior do mundo) que se desembocam no México.
Em cada fala, em cada conversa, percebi quão pastoralmente desafiadora é essa situação. Porém, vi também o quão bonitas são as experiências de nossas Igrejas na América Latina. O compromisso com uma teologia que nasce do povo e que se preocupa com esse clamor me fez lembrar meus tempos de estudante de teologia. Ficou-me forte a partilha das “espiritualidades da resistência” que nossos irmãos e irmãs latinas partilharam. Nossas Igrejas, embora pequenas, têm experiências lindas e inspiradoras.
Minha formação filosófico-teológica me permitiu tentar ensaiar uma fala a respeito do modo como se deve compreender a ideia de território. Não se compreende as ideias de fronteira, migração e intolerância sem tocar no tema do território. Procurei contribuir com a discussão abrindo uma reflexão a respeito do modo de viver moderno que coloca a tecnologia como mediadora das relações e que nos desenraiza de qualquer conexão mais profunda. Repensar as relações com o território é nos colocar de modo distinto a ele e nos ver como pessoas que pertencemos à terra e devemos ser hóspedes dela e não seus donos. Tentei trazer uma reflexão mais de causas, do que de efeitos. Embora, no meu entender, muito se olha para os efeitos e pouco para as causas. Junto comigo, diversas reflexões surgiram e olhares distintos a respeito do tema.
Por fim, todos nós iremos contribuir com nossos materiais que, juntos, se tornarão um livro, e nossas apresentações serão editadas, em suas melhores falas, para se tornar material para apoio na educação teológica.
A partir do encontro, acredito que a Província do Brasil (IEAB) deva refletir:
a) Como estamos, enquanto Igreja, respondendo aos desafios da migração? Será que os migrantes são para nós o rosto de Jesus Cristo, que se fez migrante? Como podemos assumir essa questão como uma agenda pastoral entres as Dioceses? Sei que existem trabalhos pontuais importantes no Brasil, mas observando as experiências dos irmãos e irmãs e até mesmo de outras Igrejas, como a ICAR, acredito que necessitamos avançar.
b) Como agregamos tais questões em nossa educação teológica? Como temos pensado nossa Educação Teológica? Há desafios que podemos pensar.
Há muitos desafios a respeito do tema que nossa Província precisa se dar conta. É necessário sair um pouco de nossas bolhas temáticas e perceber que existem outras questões a serem pensadas. Acredito que essa experiência me faz querer continuar em minha caminhada pastoral e ministerial na Igreja. Admiro a coragem e a profecia que as Igrejas latinas promovem e vivem suas práxis. Elas mostram que a revelação de Deus continua agindo. Com pouco se faz muito para muitas pessoas.
Wallace: “Eu sou migrante”
“Não oprimam o estrangeiro; pois vocês conhecem o coração do estrangeiro, já que vocês também o foram no Egito.” (Ex 23.9)
Brasileiros não precisam solicitar visto para entrar na Guatemala, foi o que li no site da embaixada. Um pouco apressado e cansado, peguei a fila do controle de imigração do aeroporto La Aurora, na Guatemala, e fui interrogado se possuía visto… para os Estados Unidos?! Como meu visto “americano” já estava vencido e estampado em outro passaporte, não pensei em trazê-lo comigo, afinal, meu destino era a América Central. Mas, ficou subentendido que queriam, na verdade, saber se eu estava de passagem pela Guatemala para chegar aos EUA, legal ou ilegalmente.
Porém, antes que eu pudesse me explicar, fui conduzido a uma sala de entrevistas onde, já não tão certo de que poderia entrar, procurei no meu e-mail por carta-convite, códigos de passagem aérea e outras coisas para provar que eu ia participar de um encontro de Educação Teológica. Era uma consulta que, ironicamente, discutiria os muitos problemas das migrações e das pessoas migrantes. Por fim, me deixaram passar, já que aparentemente eu não tentaria atravessar a fronteira rumo à terra dos sonhos de muitos brasileiros, inclusive jovens como eu.
Naquele momento, me dei conta que estava no principal corredor migratório do mundo, e passei a observar o quanto as instituições e o modo de vida guatemalenses assumiram políticas internas e acordos com a principal potência mundial para a qual, por contingências geográficas, a Guatemala é meio de caminho de muita gente da América Latina e de outras partes do mundo em busca de realizar o “sonho americano”.
Eu pensava que iria ao evento como um outsider, e falaria sobre os migrantes, na perspectiva da alteridade, da missão, da compaixão que eu, supostamente um não-migrante, poderia oferecer. De repente, vi a mim mesmo em situação de migrante, assim como, de um modo ou de outro, todo ser humano é, mesmo que com distintas implicações. Nossos mais remotos antepassados se moviam pelo planeta, e a vocação nômade não deixou de acompanhar o povo da Bíblia, tampouco se extinguiu no mundo de hoje. As rotas humanas, com frequência se aproximam, se cruzam, se mesclam, geram diversidades, e são estas que cada pessoa, cultura, época, sociedade trazem consigo.
Inspirando-nos no chamado da Conferência de Lambeth de 2022 sobre ser Igreja de Deus para o mundo de Deus, pude falar um pouco do lugar e do potencial da educação teológica na missão em face das migrações, a partir da história do cristianismo no Brasil e à luz de enfoques bíblicos e teológicos que possam nos abrir aos pressupostos, métodos e abordagens que melhor respondam aos desafios do tempo presente, e que promovam verdadeiras transformações, a começar pelo entorno de nossas comunidades e instituições de formação.
De saída, relembramos o centenário da Conferência Missionária de Edimburgo, de 1910,
Reconhecendo a necessidade de formar uma nova geração de líderes com autêntica inclinação para a missão, num mundo marcado pelas diversidades do século 21, somos chamados a trabalhar em conjunto por novas formas de educação teológica. E, porque todos nós somos imagem de Deus, essas novas formas se basearão nos carismas de cada pessoa, e também no desafiar uns aos outros a crescer em fé e compreensão, a compartilhar recursos de forma equitativa em todo o mundo, a envolver o ser humano todo e toda a família de Deus (THE COMMON CALL, Edinburgh, 2010, tradução nossa).
Esperamos que, cada vez mais, nossas Províncias e Dioceses ao redor do mundo compreendam não só a importância de investir tempo, dinheiro e carismas na formação bíblica e teológica de nosso clero e lideranças leigas, como também atentem para o fato de que a visão que temos de Deus – especialmente aquela que conseguimos enxergar em sua criação – impactará, inescapavelmente, nas ações e palavras que tornaremos públicas em nossa vida cristã pessoal e como Igreja.
Chamado de Guatemala para a Educação Teológica
Da Consulta saiu um “Chamado de Guatemala para a Educação Teológica na Comunhão Anglicana”, desde nosso contexto afro-ameríndio. Ele está sendo finalizado e, assim que aprovado por todas/os as/os participantes e em consulta com outros organismos que trabalham com educação teológica na região, será lançado e discutido no Seminário que está previsto para acontecer durante a Conferência de Lambeth.
Para mais informações ou sugestões, contatar Paulo Ueti (paulo.ueti@anglicancommunion.org), diretor adjunto TEAC / Escritório Global da Comunhão Anglicana.
Fotos: Reprodução